A cada momento, a vida te oferece uma situação com a qual você pode aprender. Esqueça espiritualidade, esqueça técnicas, esteja ali, e ouça o que está se apresentando para você. A cada momento, você pode ver alguma coisa. A visão é o coração do mundo, a razão para a vida, é fogo, sua dinâmica, sua alquimia. Aprender a deixar os olhos abertos.
Ver significa olhar como eu, os outros e o mundo funcionam, sem o menor movimento de justificativa, sem tentar provar que eu estou certo ou errado. Olhar apenas isso. Vamos falar sobre emoções, esses sentimentos que me atravessam um milhão de vezes por dia. A gente esquece que somos seres emocionais, porque ao longo do tempo nossas emoções deixaram de ser orgânicas e em movimento livre para cristalizarem-se em padrões de defesa. Eu sinto o medo crescendo, ciúme ou desconforto e eu crio um subterfúgio para não sentir. Todo dia, eu estou buscando uma coisa: escapar situações e as sensações que vem com elas. Eu vejo isso e aí é onde o olhar começa a abrir; ai é onde uma riqueza penetra a minha vida. É um retorno ao si mesmo, para a intimidade mais essencial.
Mude sua perspectiva | Byron Katie
Byron Katie chama esse processo de “O trabalho”. Esse movimento de retornar a si mesmo consiste em questionar meu olhar sobre uma situação cotidiana e dissecá-la. Katie pergunta “o que você seria sem o pensamento ‘meu parceiro deveria me amar mais… meu filho deveria falar comigo… minha mulher deveria cuidar melhor de mim… meu marido deveria me respeitar… meus pais deveriam me aceitar como eu sou…, etc.’?” A situação é o que é, apenas a minha opinião é a causa do meu sofrimento. O pensamento é a fonte da minha infelicidade, da minha tristeza. Diferente se eu me volto para mim mesmo, investigo minha reação enquanto escuto a situação como ela é.
Todas as religiões do mundo, todas as espiritualidades e as filosofias encontram sua fonte nesse questionamento do encontro com a emoção sentida. Sofrimento, medo, tristeza, nostalgia, desejo, alegria, satisfação, desgosto, rejeição. Tudo está para ser observado e reaprendido, para deixar viver as inevitáveis emoções que me atravessam quando se apresentam.
A fonte de todas as emoções é alegria | Abhinavagupta
No século 11, Abhinavagupta perguntou porque nas artes como o teatro, poesia ou na visão de um trabalho artístico, eu posso alegremente me entregar para a emoção evocada, seja tristeza, desespero ou raiva, enquanto na minha vida diária, eu resisto e sofro com as mesmas emoções? Vamos transpor essa questão para o mundo de hoje. Eu vou ao cinema para ver um drama, um filme de terror ou suspense. Porém, as emoções de tristeza, medo ou angústia experimentadas durante o filme não me traumatizam, pelo contrário, eu experimento grande tranquilidade no final do filme. Ainda que eu tenha chorado todas as lágrimas do meu corpo, sentido minha garganta apertar e meu estômago contrair. Por que sentir essas emoções que experimento durante o filme me deixa feliz e calmo, enquanto na minha vida diária, essas mesmas situações tornam-se um trauma? Porque na vida diária, a emoção é bloqueada, rejeitada, camuflada, evitada. Para Abhinavagputa, a fonte de toda emoção é a alegria. Uma emoção vivida completamente, qualquer que seja, traz você de volta para a alegria. Essa é a razão pela qual no cinema eu fico na verdade feliz por ter sentido tristeza, alegre de ter vivido o medo, alegre por não ter bloqueado a angústia.
Com uma visão mais moderna, Peter Levine explica que uma emoção que foi bloqueada numa situação, vai se cristalizar e permanecer na psique e no corpo, até que possa se libertar. Por outro lado, uma emoção vivida e sentida, sem rejeição ou defesa, vai ser eliminada sem deixar rastro. Não tem trauma posterior, tem apenas uma emoção vivida que permanece existindo no meu corpo e mente, permanentemente até que tenha se esgotado completamente. Meu trauma é uma emoção que não foi vivida até o fim e não teve sua energia revelada na sua totalidade – vai persistir em mim de forma recorrente. Além disso, no curso do tempo e traumas acumulados, eu não consigo ver nenhuma situação da minha vida de um novo jeito, apenas pelo que é, ou seja, sem referências. Ao contrário, eu passo meu tempo reprisando as emoções vividas. Se eu fui abusada, as situações da minha vida serão vistas através do meu padrão de abuso. Se fui abandonada, eu vou me colocar em situações semelhantes, ou mesmo, inconscientemente forçar a outra pessoa a me abandonar para recriar essa situação conhecida de abandono e rejeição.
O trabalho é então começar a explorar a possibilidade de que a emoção pode ser abordada de forma diferente, de que tem um outro jeito. Emoções precisam ser sentidas, através de todo meu corpo, em todo meu ser. Aí é onde ferramentas de exploração, como a Yoga da Cachemira, por exemplo, oferecem uma intervenção para descobrir o momento em que eu bloqueio, para trazer à luz meu mecanismo de defesa quando uma emoção aparece, e assim, pouco a pouco, encontrar novamente o estado mental onde minha emoção pode ser vivida e finalmente esgotar-se, sem deixar vestígio no meu corpo ou minha psique.
Sofrimento na jornada espiritual – Abdel Kader e Rumi
“Agora, se considerarmos os seres sob a condição de sua realidade metafísica (al-haqa’iq al-ghaybiyya), qualquer coisa que aconteça lhes é adequado. Além disso, nada acontece a eles que não seja necessário a sua essência natural.”
Nessa primeira sentença, extraída do Book of Halts, Abdel Kader, um eminente Sufi do século 19, explica que nada acontece que seja negativo ou positivo em si mesmo. Qualquer coisa que se apresente a mim, tem que acontecer. É apenas o meu próprio julgamento que, do ponto de vista pessoal de pensamento, classifica os eventos da minha vida como sucessos ou fracassos. Além disso, na segunda frase, o Emir afirma que na verdadeira natureza do mundo, qualquer coisa que aconteça não é apenas inevitável, como também essencialmente necessário e não pode não ser. Em outras palavras, não tem erro, não tem nada faltando. O que a vida traz para mim é exatamente o que eu preciso – uma oportunidade de voltar-me a mim mesmo, observar meu funcionamento.
Abdel Kader mais adiante descreve as emoções de dor, sofrimento e tristeza como inevitáveis no caminho do místico, porque “é porque o homem não consegue por ele mesmo escapar da sua dor, que os maiores santos choraram, gemeram, suspiraram, pediram ajuda e rezaram, que esses sofrimentos lhes foram poupados.” Rumi, no Livro 2 de seu famoso Masnavi (verso 3645), apresenta uma parábola na qual um homem é mandado pelo rei a encontrar o ramo de uma árvore que traz todo o conhecimento do mundo. Assim o homem busca por anos, mas nunca encontra a árvore e finalmente retorna ao rei chorando, sua espinha quebrada pelo peso da tarefa impossível e dos anos vagando sem sucesso. Nesse estória, o rei é não outro que não Deus, e o homem, um devoto no caminho da Verdade. Para o Sufismo, a emoção do sofrimento experimentada durante a busca espiritual é constante. O momento crucial é o desânimo total, onde não há mais energia para avançar e apenas lágrimas derramam; toda esperança está morta, todas as dinâmicas consumidas. Aí é quando Deus vem. O devoto, quando não há mais nenhum movimento para ir em direção a nada, para sair de qualquer situação, pronto para morrer, está na posição ideal para receber o ensinamento místico.
Sofrimento psíquico e físico deixa espaço para um entendimento claro – a discriminação da Realidade ilusória, huwa, na qual ele pode reconhecer que aquilo que parece ruim para ele no momento, é na verdade o caminho em direção ao entendimento da natureza essencial das coisas. Abdel Kader explica que o huwa metafísico não é personalizado nem determinado: não é por uma terceira pessoa, nem qualquer multiplicidade a que se poderia referir. Huwa é sem referência, é transcendente. Reflete Alá, que está além de qualquer multiplicador, além de qualquer contexto. É o reflexo de Alá que está além de qualquer múltiplo, além de qualquer dado contexto. Alá é a única verdadeira Realidade, não é concebível ou explicável. Ele é a única essência de todas as coisas no mundo.
“O que ele encontrou que perdeu Você?
E o que perdeu aquele que encontrou Você?”
É então no encontro das minhas emoções que eu começo minha jornada, para encontrar o ser que sou, pronta para abrir mão de tudo – minhas ideias, meu mundo, meus problemas e minhas esperanças. Felicidade parece para mim tão fabricada quanto a infelicidade, e eu descubro por trás dessas máscaras uma realidade muito mais profunda do que eu jamais suspeitei. Não tem escapatória, o desejo de ver claramente se torna uma urgência que me leva para além de qualquer decisão. Emoções aparecem na minha vida para me mostrar tudo aquilo com o que eu ainda não fui capaz de me confrontar. A vida tem suas próprias razões que não conseguimos entender. Graça aparece a cada momento, quando eu entendo profundamente que tudo que está no meu caminho é certo e não poderia ser diferente. Não tem erro, apenas infinitas oportunidade de crescer para sermos nós mesmos. Com a máxima confiança, eu me coloco nas mãos de Deus.
A vida é uma jornada contínua, um convite para um constante retorno para o si mesmo. É necessário parar de violar isso, pedindo que os eventos sejam diferentes do que são, desejando que as pessoas sejam mais isso ou aquilo. Você tem que parar de tentar mudar a você mesmo. Você tem que ouvir. Olhar ardentemente. O medo não é amedrontador, a violência não é violenta, nem a alegria é alegre. É necessário investigar a emoção na sua medula, e para isso, cada um precisa retornar para si mesmo, com os olhos banhados em ternura por cada sofrimento, cada limite, cada medo que encontrar. A única liberdade profunda é a investigação, nesse retorno para o centro do meu ser.
* tradução do texto original em inglês, publicado por Mariette Raina na Never Apart Magazine, do Canadá.
Mariette é mestre em antropologia pela Universidade de Montreal. Ensina yoga alinhada com a filosofia do shaivismo tântrico não dual da Cachemira. Ela viaja regularmente para a India para prosseguir com sua pesquisa sobre as tradições esotéricas dos Tantras.