ser psicoterapeuta é sacerdócio?

Uma supervisionanda me trouxe essa questão numa sessão individual de supervisão há alguns meses. (supervsionanda = psicoterapeuta que leva seus casos para supervisão de outro psicoterapeuta mais experiente, com o intuito de aprender e trocar impressões sobre seus atendimentos e seu próprio processo de autoconhecimento – prática fundamental a todo psicoterapeuta que quer fazer seu trabalho com seriedade e entrega!)

Por que essa pergunta? foi minha primeira colocação. Ah porque as pessoas abusam demais em pedir descontos no valor da sessão (mesmo quando você sabe que elas não precisam!) ou acham que você tem que estar disponível o tempo todo, a qualquer momento, para elas! Me disse…

Entendi de onde veio a questão…. mas como meu objetivo não é transcrever uma sessão de supervisão em psicoterapia clínica, vou fazer o exercício de refletir aqui o que penso sobre essa questão.

Não. Ser psicoterapeuta não é sacerdócio, mas…

Não é sacerdócio no sentido literal. Não estamos ali para atender “de graça”, afinal nem mesmo os sacerdotes estão ali dedicando-se ao seu trabalho sem remuneração, pois são remunerados pelas instituições das quais fazem parte. Com exceção, claro, de quando nos dispomos a fazer um trabalho social ou voluntário – o que a maioria dos psicoterapeutas que conheço, inclusive eu, faz – mas daí existem outras questões envolvidas e que não cabem nessa reflexão.

Também não é sacerdócio no sentido de que não temos a mesma função de um sacerdote, pois não estamos ali para aconselhar, seguir uma doutrina, aquietar o coração de ninguém, dar instruções de como seguir a sua vida… ou qualquer outra coisa que caiba a um sacerdote.

Mas…

Ser um bom psicoterapeuta exige sim uma boa dose de sacerdócio. Em que sentido? Sacerdócio é sinônimo de missão. E missão pode ser entendida aqui como cumprir um dever, algo que se faz menos por obrigação ou porque se está sendo pago por aquilo, mas fundamentalmente porque é algo que seu coração e mais ainda, a sua alma, pede (quase exige) que seja feito.

Pelo menos é como eu entendo; e vou tentar explicar minhas razões.

Primeiro porque para ser um bom psicoterapeuta é preciso dedicar-se séria e diuturnamente ao seu próprio processo de autoconhecimento, e buscar, acima de qualquer outra coisa, a consciência de si mesmo. Confrontar-se com suas sombras, dores existenciais, traumas da infância etc… passar por muitas crises ao longo da vida e dar conta de superá-las para que um novo eu, mais consciente, se apresente… e esse é um trabalho hercúleo e que exige uma entrega profunda e verdadeira, muita coragem, vários momentos de solitude e um sincero mergulho nas questões evitadas pela maioria dos seres humanos; as questões existenciais e filosóficas da vida: quem sou eu? o que estou fazendo aqui? o que é a vida? etc, etc, etc… E tudo isso é muito exigente!

Também porque é um trabalho de enorme responsabilidade, afinal você está lidando com a psique (a alma) de outro ser humano e isso não é brincadeira. É um trabalho exaustivo. Se concentrar no outro sem distrações, buscando a linha tênue entre ajudá-lo a superar suas dores, acalmar a sua alma e cutucá-lo para que aquele outro que está na sua frente consiga fazer seu processo de transformação para uma vida mais alinhada com seu eu verdadeiro. Estar ali para o outro. Ajudá-lo a confiar no processo, a confiar em si mesmo e na vida. Ajudá-lo a ter coragem para enfrentar seus medos e desafios. Não é fácil e exige muito amor.

E por fim porque custa caro ser um bom psicoterapeuta. Além da formação básica inicial – quer você faça faculdade de psicologia ou busque uma das inúmeras formações especializadas como, por exemplo, em psicanálise ou psicologia analítica ou corporal (não importa!), você precisa fazer terapia por anos (e pra sempre na verdade) antes de sequer querer sentar na cadeira de psicoterapeuta. E terapia boa custa caro, ou deveria custar, por tudo que já falei antes e também porque não é um trabalho que um bom psicoterapeuta consiga fazer por muitas horas por dia/por semana. E um bom psicoterapeuta ainda vai ter que pagar supervisão, vai ter que participar de grupos de estudos e novas formações a vida inteira.

Então, ser psicoterapeuta não é um trabalho como outro ‘business’ qualquer. Um bom psicoterapeuta atende um número limitado de pessoas por dia/semana para poder sustentar psiquicamente o seu próprio processo e o dos outros. E por essa razão, principalmente, o consultório precisa crescer lentamente, para que ande ‘pari passu’ com o processo de autoconhecimento e ampliação de consciência do próprio psicoterapeuta.

Por isso, ganhar dinheiro como psicoterapeuta demora muito. E ganhar muito dinheiro sendo psicoterapeuta (tipo como, por exemplo, trabalhando na indústria de tecnologia ou financeira) não acontece. Ou acontece para muito poucos e, normalmente, através de outras fontes de renda fora do consultório – publicando livros, ficando ‘famosinho’ na mídia, montando cursos de formação…

Isso não significa, como já disse acima, que ser psicoterapeuta não deva ser remunerado (e bem remunerado) e muito respeitado. E que ser psicoterapeuta signifique estar à disposição de todos o tempo todo. E que, caso você realmente precise de desconto no valor da sessão você não possa pedir, mas que isso nunca signifique uma desvalorização do trabalho do profissional que está disposto a colocar seu ser à serviço do desenvolvimento de outro ser, com o nobre objetivo de auxiliá-lo no caminho árduo do viver! E isso, sinceramente, nem todo dinheiro do mundo vai compensar, pois é preciso entregar sua alma para fazer bem feito. Apenas compensa se sua alma estiver preenchida verdadeiramente pela dedicação!

Por tudo isso eu entendo perfeitamente a pergunta da minha supervisionanda, trazida não sem certa dose de chateação!

p.s.: outros posts relacionados que podem ser do seu interesse são: Psicoterapeuta não é psicólogo? e Cada um que vem ao meu consultório toca algum ponto meu? 

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